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A praça estava vazia naquela noite de final de dezembro. A passagem de ano sempre fora curiosa para ele. Quando ainda menino ficava olhando pela fresta das janelas a procura da figura de um velho de bengalas que se afastaria dando lugar a um bebê que se apresentava como o ano novo.

 

 

Surpresas de Ano Novo

 

Iria comprar um apartamento novo no melhor bairro da cidade para eles morarem, com um quarto para cada neto. Lembrou-se do seu melhor amigo, agora cadeirante, e imaginou uma cadeira motorizada que pudesse livrá-lo da necessidade de ter sempre um acompanhante para seus deslocamentos. 

 

Depois que os filhos se casaram, passou a morar só e essa solidão é que o levava diariamente em direção à praça. Roberto depois, pensou: 

 

 

 

 

 

Manteve-o entre os dedos e fechou os olhos continuando a sonhar.

 

                                                                                       ***

 

Era avesso a jogos. Achava que não tinha sorte. Lembrava-se das vezes que tinha arriscado participar das rifas que, toda semana, os colegas de trabalho inventavam de fazer para arrecadar algum dinheiro. Só conseguiu ganhar uma de todas das que participou e que não foram poucas. Lembrou-se de uma vez, ainda quando criança, que uma vizinha lhe pediu um palpite do bicho que ia dar naquele dia. Surpreendido com a pergunta arriscou: macaco, vai dar macaco! Lembrara-se da Chita - a macaca do Tarzan, filme que havia visto na véspera. A vizinha  jogou e ganhou. Deu macaco na cabeça pelo que ela, toda contente, falou no dia seguinte quando trouxe uma bola de borracha como presente de reconhecimento. 

Maurício Pinheiro

é reformado da Marinha de Gerra do Brasil e comerciante

mauricio_pinheir@uol.com.br

 

Olhou em volta, escolheu um banco e se acomodou com as mãos apoiadas nos joelhos, olhando as folhas caídas no chão, quando sentiu uma lufada mais forte surgida de repente como que dando nova vida a toda aquela sujeira que se elevou no ar e se movimentou em redemoinho passando pela sua frente, girando em torno dos bancos, quando observou um pedaço de papel que arrastado pelo vento grudou em suas mãos. 

Um bilhete de jogo de loteria que chegara voando misteriosamente e se prendera em seus dedos. Olhou a data e viu que tinha corrido naquele dia  e o premio se traduzia em alguns milhares de reais. Pensou nos seus filhos. Todos levando a vida com muita dificuldade. Caso o bilhete estivesse premiado esse dinheiro resolveria todos os problemas da família. Iria até interromper a separação da filha predileta que, premida pelas necessidades, sentia seu casamento se esvair pelas brigas constantes com o marido, que não estava mais conseguindo pagar as despesas famíliares.

Viúvo desde os quarenta anos, viu os filhos crescerem e  tomarem rumos próprios. A morte súbita de Marisa em um acidente de trânsito deixou-o ainda mais reservado. O casamento havia sido inevitável depois de mais de 5 anos de namoro. Mas ia bem, porque havia respeito e atenção de ambas as partes, embora eles nunca tivessem se amado com a volúpia de dois amantes. O grande amor de Roberto havia se dado no tempo da faculdade, mas por timidez ele nunca revelou a ninguém, nem mesmo para o objeto da sua adoração.

 

A partir dai as solicitações passaram a ser diárias e os palpites eram galinhas, urubus, animais que existiam no vocabulário do menino, mas que não serviam para o propósito que a vizinha desejava até que ela desistiu de fazer mais solicitações. Participou de um Bingo, anos atrás, quando era permitido. Separou um dinheiro para arriscar e enquanto procurava os números para marcar se atrapalhando todo, ouvia alguém bater um sino anunciando o acerto sem que houvesse marcado pelo menos um terno. Encerravam-se aí suas incursões no mundo da sorte. Tudo o que conseguira na vida fora obtido com muito trabalho e dedicação.

Ela estava ainda ressentida com o recente divórcio, mas não dava mais para continuar com aquela vida de brigas e agressões mútuas. Sem filhos foi fácil o acordo de separação consensual. Como advogada de uma imobiliária ela ganhava o suficiente para se manter com uma certa dignidade. Costumava jogar sempre naquela lotérica próxima à praça porque achava que lhe dava sorte. Já havia ganho mais de uma vez. Porém, com prêmios pequenos. 

 

Desta vez, havia acabado de conferir. Tinha acertado em cheio na sorte grande e naquela euforia elevou o bilhete acima da cabeça quando sentiu, numa fração de segundo, um vento forte que lhe arrancou o bilhete das mãos empurrando-o em zig-zag, subindo e descendo sempre na direção da praça. Quase o alcançou de um pulo. Porém, mais vento levou o papel para o alto atravessando a rua, sempre naquele movimento oscilante, alcançando a praça que parecia estar vazia naquele momento. 

Gláucia viu naquele instante, quando o bilhete caprichosamente foi se alojar entre os dedos de um homem que, sentado em um banco,  lhe pareceu familiar. Aproximou-se devagar e reconheceu Roberto, colega da faculdade por quem sempre tivera uma forte atração. Porém, na época ele não se 'ligava' em ninguém da escola e se mantinha afastado de namoros, ficando voltado apenas para os estudos. 

 

Lembrou-se da ocasião em que esqueceu um livro em sala de aula quando Roberto ao encontra-lo escreveu na contracapa uma poesia tomando as dores do livro que teria sido negligenciado, o que levou-a a pensar que a poesia seria uma metáfora em que ele estaria no lugar do livro, lamentando ser por ela abandonado.

 

----Roberto

----Glaucia, mas que surpresa!

Ela se abaixou e apanhando o bilhete caído no chão, disse:

----Estava correndo atrás deste bilhete que o vento tirou da minha mão e tive a grata surpresa de encontrar vocês dois como se fosse um capricho do destino!

E continuou:

----Sabe Roberto apesar de depois destes anos todos você nunca saiu dos meus pensamentos. São lembranças boas do tempo de faculdade.

 

Roberto levantou-se e envolveu-a nos seus braços. Sentiu seus seios pressionando seu peito. A fragrância de um perfume suave invadiu suas narinas. 

----Glaucia, - murmurou junto ao seu ouvido - você foi minha paixão naquele tempo e eu nunca tive coragem de admitir. Achava que você iria me rejeitar. Por isso me afastei, saí da cidade. Tomei outro rumo, outro destino.

----Roberto logo, logo ouviremos os fogos e assistiremos à passagem do ano. Neste reencontro ganhei o melhor presente de ano novo. Ganhei na loteria e - muito melhor - ganhei a sua companhia. E agora lhe faço uma proposta: vou abrir o escritório ROBERTO/GLAUCIA-ADVOGADOS e espero que você aceite, porque o destino resolveu nos unir depois deste tempo todo e o ano novo que já vai começar nos espera juntos por um novo futuro que nós iremos construir.

 

 

 

Quanta vontade ela sentiu de estar ao seu lado naquela hora trocando sorrisos e compartilhando daquela alegria coletiva! Mas a timidez impediu-a de fazê-lo até a hora em que o guia resolveu fazer um concurso de beleza entre os ocupantes do ônibus. A escolha era para eleger a rainha da excursão com a votação secreta em que cada um escreveria em um pedaço de papel o nome da sua candidata. Para surpresa de todos foi lido o nome do Roberto no meio de tantos nomes femininos. Ficou aquele murmurinho para saber qual das garotas teria votado nele. Apesar da letra de forma não permitir muitas pistas ficou-se procurando traços denunciadores nos papéis de votação, que levassem à identificação da autora, quando o próprio Roberto levantou-se e disse ter sido ele o autor da brincadeira. A seguir seus olhos se encontraram longamente com os dela revelando uma cumplicidade que ela mesma não esperava reforçada pelo fato dela ter reconhecido os traços pessoais dele no único voto que indicava o nome de Glaucia para rainha da excursão.

 

***

 

Ela vinha de uma família de juristas, cujo pai era desembargador. O avô era político de prestígio e havia sido governador de Estado e essa diferença social o assustava. Roberto não chegou a conhecer o pai que morreu de alcoolismo quando ele ainda era muito criança. Fora criado pela avó, funcionária subalterna dos correios, ganhando muito pouco, não podendo suprir todas as necessidades básicas do menino.

 

Se o bilhete já correu e está voando na praça é porque foi abandonado por alguém por não ter sido premiado. 

 

Glaucia e Roberto nunca mais se viram depois de formados. Ela soube através de antigos colegas que ele, aprovado em um concurso,  passou a morar e trabalhar em outra cidade. Soube que havia se casado e recentemente ficado viúvo. No retrato da formatura colado em seu álbum ela circundou o rosto dele com tinta nanquim destacando-o dos demais. Agora, sentado naquele banco ficou observando seu rosto que mantinha ainda os traços da beleza pela qual ela sempre se sentiu atraída. A barba agora era grisalha em contraste com os cabelos ainda pretos e rebeldes que se moviam ao sabor da brisa que naquele momento ocupara o lugar da ventania. 

 

Continuou com suas lembranças - desta vez no ônibus - de uma excursão feita com os colegas de turma em que Roberto procurou sentar-se isolado, absorto na leitura de um romance em contraste com a algazarra toda a sua volta. 

 

Ela havia se emocionado pela falsa confissão de autoria porque não gostaria que seu voto fosse descoberto e revelado diante de todos. Ao abrir os olhos, Roberto percebeu inicialmente como uma ilusão à sua frente, a figura de Gláucia sorridente e se aproximando. Tomado de susto deixou o bilhete cair no chão, quando ouviu a voz inconfundível dela chamar por seu nome:

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